Filosofitas - Filosofadas (2)

O Outro e Eu: mais que a primeira impressão

       Toda pessoa é um ser único e traz consigo suas idiossincrasias, peculiaridades e, portanto, sua individualidade e identidade. Essa condição é inerente a todo ser humano. 

       Segundo o artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), todos os indivíduos são aptos a direitos e obrigações e, dentre seus direitos está o de ser, em todos os lugares, reconhecidos como pessoa diante da lei. Portanto, a legislação deixa evidente, claro e transparente que toda pessoa é, independentemente de quais sejam suas características, condições ou situações, uma pessoa. Assim, o outro é uma pessoa e eu também. 

       Os outros e eu – um coletivo: uma legião de dessemelhantes!

Imagem 1. Operários. Óleo sobre tela. Tarsila do Amaral. Fonte: https://jornal.unesp.br/2022/08/22/festival-centenarios-reunes-pesquisadores-de-unesp-usp-e-unicamp-em-mesa-redonda-sobre-identidade-nacional

       Parece-nos que temos algum entendimento sobre quem somos e, nessa perspectiva, compreendemos a existência dos outros que, comumente, são personagens criadas pela nossa imaginação, projeções da realidade gerada pelas nossas crenças, porém, são outros; seres totalmente independentes, autônomos e diferentes. Ninguém é igual a ninguém. 

       Somos distintos, diversos.  E quando se ouve falar em diversidade, na maioria das vezes, a questão refere-se a temas como gênero, cor, religião, etnia, orientação sexual. E esses tantos recortes incluem o grupo de pessoas com deficiência, que hoje, de acordo com últimos números do IBGE, está na casa dos 18,6 milhões de brasileiros.

Imagem 2. Diálogo. Ângelo Rigon. Fonte: www.flickr.com/photos/93934155@N00/26583091382/in/dateposted-public

       O uso de determinadas terminologias, seja em linguagem escrita ou falada, colocadas em contextos de situações capacitistas – que é quando uma pessoa se julga superior a outra pessoa pelas suas capacidades, são frequentes, até mesmo como entretenimento em eventos de humor, e isso gera muito mais que simplesmente ruídos e acaba por suscitar preconceito, discriminação e discursos de ódio impregnados nas mais diversas formas de comunicação.

Imagem 3. Autor desconhecido. Fonte: https://trabalhosaudiodescritos.blogspot.com/2017/08/cantinho-dos-cadeirantes.html

       Esses comportamentos são hoje massificados em redes sociais, acontecimentos culturais e até em discursos e conversas informais que prejudicam o acesso ao acolhimento e outras atitudes necessárias à inclusão social.  

       As práticas repetitivas de violência, nas suas mais variadas formas, por manifestações verbais ou não, contra determinadas pessoas, tornam a sociedade em um lugar bastante desconfortável. Os adjetivos pejorativos, os escárnios e até perseguições geram exclusão social para muitas pessoas devido às suas características físicas, às situações em que se encontram e às condições que lhes são impostas.   

       Muitas vezes a agressão ocorre de maneira voluntária. Entretanto, a cultura trazida pelas pessoas de onde se vive, muitas vezes traz a violência como uma “brincadeira”, “ingenuidade”, “algo que sempre foi assim”, “natural”. Assim, essas ações ficam em um limbo, figurando numa linha tênue entre ignorância e violação legal.

Imagem 4. Flávio Oliveira. Fonte: flaviogoliveira.wordpress.com

       Alteridade, que é, em suma, a percepção de que o outro existe e de que ele é diferente, assim como o etnocentrismo, que é quando um grupo de pessoas se julga superior a outro, são palavras literatas que trazem em sua essência a formação da cultura de muitas sociedades, tanto em seu formato macro, como um país, quanto no micro, como uma família ou um grupo de amigos. 

Imagem 5. Autor desconhecido. Fonte: www.todamateria.com.br/etnocentrismo.

       A cultura é uma das propriedades mais valiosas produzidas pela humanidade e pode-se defini-la como um conjunto de padrões sociais, hábitos, crenças, costumes e produções artísticas ligadas a um grupo específico de pessoas. E, dentro do conceito de cultura, podemos dividi-lo em cultura autêntica e cultura inautêntica. A cultura inautêntica é a cultura de massa que leva à perda de si próprio, uma vez que é ocasionada em ampla escala e funciona como manipulação das massas, que serve a interesses tanto mercantis quanto políticos e como estratagema para girar a máquina capitalista por meio de lucros com produtividade cultural.

Imagem 6. Hagar, o Horrível. Dik Brownde. Fonte: histria-cma-canoas.blogspot.com.

       No âmbito da Comunicação Social, o termo “massa” indica um grupo diversificado, com algumas características específicas: seus participantes pertencem a qualquer categoria social; são anônimos e têm uma organização frágil.

Imagem 7. O psicanalista francês Jacques Lacan. Fonte: https://www.ip.usp.br/

       Lacan nos traz que “palavra plena é palavra que faz ato”. Palavra plena é então ato cultural crítico que, em um tempo de esvaziamento de reflexões humanitárias, pode funcionar como propulsor de um movimento contrário à massificação de sujeitos mergulhados nas mais diversas redes sociais que temos nos dias de hoje. 

       A inclusão social é o antídoto contra o preconceito, pois ela é gerada em diálogos abertos, nos entendimentos mútuos e no respeito de cada um dos membros que compõem a sociedade. Existem práticas e atitudes que, em conjunto, podem provocar eliminação de ideias preconcebidas, e assim, auxiliar no combate a quaisquer formas de discriminação e também no desenvolvimento integral e crítico de indivíduos, independentemente de quais sejam suas características.

Imagem 8. Mafalda e Susanita. Quino. Fonte: https://2mssocio.forumeiros.com/t15-classes-sociais-primeiro-tema-de-debate

       Portanto, como estratégia de ampliação da inclusão social faz-se necessário o combate contra a cultura de massa, que vai na contramão dessas questões elencadas e, seu foco está no alcance e no lucro rápidos que ela pode gerar. Hoje vemos pessoas indo a apresentações em que são utilizadas situações e palavras discriminatórias para determinados consumidores que adquirem esses produtos para risos e uma satisfação imediata e logo após desejam consumir mais dessa substância tão nociva à sociedade.

Imagem 9. Calvin e Haroldo. Bill Waterson. Fonte: https://www.researchgate.net

       Algumas pessoas têm reagido com repulsa após serem advertidas contra suas apresentações que trazem capacitismo, xenofobia, sexismo, classismo, colorismo, idadismo, homofobia, como matéria prima para espetáculos e explanações. Porém, cada vez mais existem cada vez menos pessoas manipuladas por elas para rirem, aplaudirem ou elogiarem seus ditos de ódio e ofensa. Isso vai muito além do que simplesmente tolices ou piadas grosseiras. Segundo o artigo 88 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (n° 13.146/2015), é crime discriminar a pessoa por sua deficiência com multa e prisão previstas para o criminoso que comete esse crime. Essas mesmas medidas punitivas servem para os crimes de preconceito, injúria e discriminação em razão de cor, etnia, religião ou procedência nacional, conforme estabelece a Lei do Racismo (n°716/1989). Onde está a liberdade de expressão? No mesmo lugar! Só que agora as pessoas expressam a sua indignação contra a agressão, o ódio e o preconceito que acontecem nesses eventos.

Imagem 10. Armandinho. Alexandre Beck. Fonte: https://www.tumblr.com/tirasarmandinho/130646177039/tirinha-original

       Uma das diferenças entre a cultura de massa e as culturas populares instruídas é que estas duram bastante tempo enquanto a massificada tem curto prazo de vida, já que ao ser consumida perde seu valor e é imediatamente substituída por um novo produto. Essa ideia traz uma esperança do verbo esperançar, pois parece possível gerar uma nova cultura em substituição ao que ainda é aceito e disseminado, ao que ainda não conta com legislação potente. 

Imagem 11. Calvin e Haroldo. Bill Waterson. Fonte: https://brainly.com.br/tarefa/28947841

       Fácil dizer sobre essas questões. Mas, eu, pessoa que digo, digo sobre o outro. Mas qual a minha visão de mundo? Será que eu não faço leituras equivocadas de uma primeira impressão que pode prejudicar não só ao outro, mas a mim e à sociedade? Será que não sou eu que rio da língua presa do amigo? Da proposta de trabalho para alguém com nanismo? Será que eu não ajudo a propagar frases de ódio e preconceito quando eu digo que “eles” reclamam demais?

Imagem 12. Autor desconhecido. Fonte: https://www.degradeinvisivel.com.br/2014/09/o-reflexo.html

       Quem sou eu? Quem é o outro? Pobre, branco, católico, europeu, eu sou, pessoa. Muçulmano, amarelo e judeu, eu sou, pessoa. Umbandista, motorista mais rico do que eu, pessoa. Imigrante ou alguém que não compreendeu, eu sou, pessoa.  Quem é o outro e quem sou eu? Pessoa.   

Cristina Brandão

Suas grandes paixões são a família, os amigos, cafés bem compartilhados e a literatura. Foi arrebatada pelo mundo dos livros antes mesmo de ser alfabetizada. Apaixonada por histórias, ilustrações, fantasias, palavras, cores, enfim, por toda expressão de arte e por suas personagens.