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Myriade

1.

Tem certeza de que deseja instalar Myriade no stratocumulus?

(Para sua segurança, Myriade continuará indetectável a partir dos estratos superiores da nuvem até que você se conecte a outro usuário ou acesse o nimbostratus.)

A major olhou ao redor, mesmo sabendo que estava no modo de navegação anônima, e respirou fundo. “Sim.”

Aguarde. Instalação em progresso…

2.

O mais curioso, no final dos cálculos, é que o cinema nunca conseguiu imaginar as condições em que já chegamos a viver por aqui. E olha que tiveram tempo de sobra: um dos primeiros filmes da história já tratava da viagem ao satélite natural da Terra. Mas não, os produtores de enlatados são muito conservas, só azeitam a opinião pública, ou em uma outra palavra, o Mercado. Assim mesmo, maiúsculo e tudo. Melindrar as plateias seria destamanha heresia contra esse deus onifodente, que nenhum deles ousaria, obcecados que são pela fama e pela grana. Nas telas, o homem bem podia colonizar Marte, viajar para galáxias distantes em velocidades de dobra espacial, podia até mesmo cruzar portais para universos paralelos, mas tudo o que se via mudar nessas viagens eram os cenários e os figurinos. Quando muito, exibiam-se alguns comportamentos bizarros, porém apenas para convencer de que o comportamento terráqueo era muito mais digno. Os sentimentos, então, esses continuavam sempre os mesmos, belos, cheirosos e universais, e os protagonistas nunca deixavam para trás sua concepção romântica do amor. No entanto, sei que a ideia central por trás do nosso estilo de vida já tinha sido sugerida há milhares de anos, certamente por algum filósofo grego, porque os filósofos gregos já pensaram em tudo há milhares de anos.

Por aqui ela alunissou na bagagem dos primeiros colonizadores, na forma de um opúsculo obscuro dos alvores do século 21 que pugnava a substituição da tão já gasta monogamia terráquea pelo que nominava onigamia, a coabitação entre todos os membros de uma comunidade, em arranjos rotativos rigorosamente aleatórios e igualitários. De comum acordo, nossos pais fundadores deliberaram cultivar o sistema. Para tal, a cada dia lunar (ou 27 dias terrestres), os casais permutariam seus parceiros amorosos, em ordem definida por sorteio. Desta sorte, esperavam estabelecer laços mais sólidos entre todos, compartindo suas intimidades uns com os outros e não concedendo conjuntura para ciúmes ou perfídias. O sistema funcionou razoavelmente bem e foi decisivo para o sucesso das missões pioneiras, como testemunham nossos historiógrafos, embora só se tenha tornado de facto um dado de cultura depois do nascimento da primeira geração de lunitas legítimos.

3.

A major Blueschip não é uma terrenha como os outros. Vejo em seus olhos o brilho da explosão de uma supernova, que só a visão panorâmica do módulo dos nativos, agora transformados em servomecanismos gratuitos, obteve nublar por um momento.

“O planeta precisa ver isso,” ela disse.

“O alto comando do planeta já viu isso,” respondi, “e ele aprovou o que viu”.

“Mas as pessoas… As pessoas precisam saber a verdade!”

“Elas vão saber.” Pausa dramática. “A seu tempo.” Agora, olhos nos olhos. “Mas se você tentar fazer isso, tudo o que vai conseguir é ser vaporizada.”

4.

Até aí tudo ia às mil e uma maravilhas. Éramos a porta de entrada de todas as exocommoditates enviadas das colônias para a Terra, e as criptomoedas fluíam no quadrado da velocidade da luz, erigindo vastas cúpulas cristalinas, paineis fotovoltaicos translúcidos e espelhos d’água tão extensos que podiam ser vistos a olho nu da superfície do planeta outrora azul. Mas nada disso se comparava, em importância, à nossa organização social.

Ah, sim, os esforços conduzidos no sentido de unir o mundo em torno do Projeto Luna importaram na criação, não de uma língua própria, mas de um vocabulário mais universalista. Considerando que nenhum outro código representava melhor esse empenho que a linguagem matemática e a terminologia científica, o inglês foi preterido em prol do latim e do grego. E coisas como as commodities viraram commoditates…

Enquanto isso, o objetivo da indústria cultural terráquea continuava sendo o de entreter os espectadores e convencê-los a se manterem dóceis e conformados com suas vidinhas pacatas e ordeiras. Quer dizer, isso se eles pertencessem à classe média. Para os excluídos do sistema financeiro galáctico, a mensagem era mudar “radicalmente” de vida por meio do esforço, da disciplina e do trabalho infatigável. Ou seja, sustentar o estilo de vida das classes superiores na esperança de algum dia ascender a elas. Claro, essa mensagem também agradava à classe média, que continuava sonhando com os privilégios daquele 1% mais abastado.

5.

Blueschip faz parte da resistência agora. E tudo depende dela. Só ela tem acesso ao hiperespaço terrestre. Vamos fazer o planeta sentir na pele o que nós vivemos aqui.

O instalador do Myriade já está salvo no seu stratus. A missão da major é acessar o hiperespaço terrestre, descarregar o programa no cumulus, instalá-lo no stratocumulus e driblar a polícia hiperespacial até transferi-lo para o nimbostratus, o que permitirá espalhá-lo por toda a rede. Para isso precisará usar criptografia de quinto grau e direcionar os dados através de um grande número de servidores intermediários, para despistar os farejadores. Ela sabe que se for pega, estará tudo acabado, mas ela disse que faria qualquer coisa por nós. “Por nós”, ela disse. Não entendi o que ela quis dizer, mas fiquei convencido da sua determinação.

6.

Mas, e toda boa história tem sempre um mas, muitos líderes religiosos da Terra, escandalizados com a cultura lunita, passaram a açular as massas e as autoridades políticas para que restaurassem os valores tradicionais da família e da propriedade. De fato, nunca houve em Luna algo como a propriedade privada, pois tudo o que construímos era financiado pelas agências espaciais das nações desenvolvidas, e tratado como patrimônio da humanidade. Sempre vivemos em comunidade e nunca vimos necessidade alguma em possuir alguma coisa que não pudesse ser compartilhada. Não praticávamos o comércio, porque recebíamos tudo o de que precisávamos. Quanto às famílias, desde que nossos pais abandonaram as suas para viverem no novo mundo, todos formamos uma grande e única família, e não entendemos que utilidade pode ter essa coisa de privilegiar algumas poucas pessoas em detrimento de todas as outras. Os terráqueos, movidos, por certo, por arraigadas frustrações sexuais e afetivas, não podiam aceitar nosso modo de vida, e muito menos aceitariam depender de nós para sobreviver.

Essa foi a causa da guerra que culminou na vaporização de muitos lunitas. Foi assim que se debelaram os movimentos grevistas insurgidos contra as leis antionigamia que nos foram impostas. Em poucos dias lunares, regredimos mais de um século solar. Depois que os terrícolas enviaram suas tropas e retomaram o controle do espaçoporto, passamos a chamá-los depreciativamente de terrenhos. E eles passaram a nos chamar de lunáticos, não sem alguma razão.

O fechamento do hiperespaço terrestre para todas as exocolônias foi uma das sanções aplicadas no fim do conflito, mas a verdade é que os terrenhos se borram de medo da capacidade dos nossos ciberpiratas. Eles são, mesmo, os melhores do Sistema Solar.

7.

A major baixou o visor de realidade virtual e, literalmente com um piscar de olhos, acessou o stratocumulus pelo seu leitor de retina. “Bene, Gugolplex, enviar Myriade.”

3,3 Terabytes carregados em 2,7 segundos.

Deseja instalar agora?

Sentiu o coração bater como nunca antes, e nem percebeu o quanto isso era clichê. “Sim.”

A barra de progresso ao estilo de tela de radar conferia um clima mais cinematográfico à ação. Assim como o alarme retrô simulando sirene de submarino, que denunciava a chegada da polícia. Apenas cinco segundos depois, a porta era estourada com um carneiro e os policiais já entravam disparando como se não houvesse amanhã.

8.

Os interventores designados para dirigir o espaçoporto, seduzidos pela nossa cultura, acabaram por corrompê-la, passando a praticar um rodízio poligâmico exclusivo para os oficiais de alta patente, os médicos e os engenheiros, terrenhos em sua maioria, enquanto os técnicos e os oficiais subalternos continuavam proibidos de comungar o leito uns dos outros. Apenas nos deram direito a um casamento monogâmico indissolúvel, mas isso para nós é impensável, absurdo. Imagine ser obrigado a se relacionar com uma única pessoa pelo resto da vida! É pavoroso e ultrajante.

E foi isso que levou nossos programadores a criar o Myriade, um ambiente virtual hospedado no stratocumulus (como chamamos o estrato intermediário da nuvem) que permite o encontro entre pessoas reais de forma privada e praticamente irrastreável a partir do cirrus (os estratos mais altos da nuvem). Não, você não entendeu, não é uma plataforma de sexo virtual, trata-se de sexo real a distância. O sistema permite permutar as mentes de dois ou mais avatares físicos, e assim, entre outras coisas, gozar dos prazeres da carne na pele de outra pessoa. A solução para o nosso drama, certo?

Errado. O que assistimos hoje é a uma degradação da nossa sociedade. Luna já foi um lugar paradisíaco, mas se tornou uma colônia penal para os seus nativos, reduzidos a mão de obra escrava, e que, proibidos de participar do seu principal evento social, permanecem trancafiados em seus contêineres navegando compulsivamente no Myriade. Depois que se começa a viver assim, é impossível não ficar dependente, apesar do alto risco que se corre. Quem é detectado pela polícia hiperespacial, é sumariamente vaporizado. Embora seja tecnicamente possível invadir contas no Myriade a partir de servidores com acesso ao cumulonimbus, geralmente isso é tão difícil que a polícia prefere se ater aos metadados de produtividade dos vassalos. Passamos tanto tempo no Myriade que nossa atenção no trabalho desaba em queda livre. Quase sempre é assim que somos descobertos. Por vezes, no meu setor, alguém acaba desmaiando em cima dos paineis de operação.

Mas vamos reverter esse quadro. Assim que o Myriade for espalhado na Terra, os terrenhos se curvarão diante do nosso gênio. Serão obrigados a evoluir, ou se destruirão uns aos outros.

9.

A major deu um matrix pra trás e saiu vazado pela escada de incêndio.

Por entre rajadas de sabres de luz e explosões silenciosas no vácuo sideral, dignas de um Oscar de efeitos especiais, nossa heroína premiada em Cannes consegue chegar até o vestíbulo do nível superior da nuvem. Ela olha para o navegador em seu pulso: aparentemente, os fardas foram despistados.

Entrou no modo de navegação anônima e acedeu ao átrio. Tocou do lado do visor e deslizou suavemente a ponta do dedo médio até o ícone, uma constelação com as estrelas ligadas por uma linha pontilhada formando a letra M.

Tem certeza de que deseja instalar Myriade no stratocumulus?

*   *   *

Publicado na Antologia Delírios I – ACID+NEON de contos cyberpunk (Coverge, 2018).

Disponível em https://coverge.com.br/acidneon/.

Mauro Bartolomeu

Poeta e escritor extraterráqueo, atualmente fazendo um estágio não remunerado neste planetinha rochoso do cinturão de Órion. Assumiu a forma humana para não assustar os demais habitantes, mas não adiantou. Parte de sua obra aparece também no blog Antenna Paranoica, onde vem publicando, muuuito a conta-gotas.