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CLICK: a aceleração da vida para deixar tudo no mesmo lugar

Imagem 1. Divulgação do filme “Click” (2006), com Adam Sandler. Fonte: Internet.
Imagem 1. Divulgação do filme “Click” (2006), com Adam Sandler. Fonte: Internet.

Uma colega da FC (Filosofia Clínica), que trabalha com Constelação Familiar, certa feita em aula trouxe uma observação que sempre gosto de tentar reproduzir. Ela contava sobre o filho de uma pessoa que ela atendeu, mas pode ser universalizado a outrxs. O menino, de pouco mais de 9 anos, vê a mãe tocando o telefone e um carro parando na porta da sua casa. Ele entra, chega ao destino. Faz sua aula de inglês, natação, não importa. Ao término, a professora toca novamente os teclados mágicos e outro carro aparece na porta e o traz de volta para casa. Em casa, quando dá fome, os pais apertam o teclado e aparece alguém levando o que eles desejam comer, de comida italiana a javanesa, não importa. Em outros momentos, quando se deseja comer algo, um dos pais vai até o refrigerador, aperta mais botões, tira o congelado, leva-se ao micro-ondas, aperta-se mais botões e a comida está pronta. Aos nossos olhos mais velhos e cansados, que passeou por outras representações de mundo, isto é comodidade. Nós guardamos uma relação de que há um processo por trás da tecnologia, há um trabalho tácito, imanente, a comida congelada foi produzida por alguém, foi plantada em algum lugar. Para a criança, ao que tudo indica essas causalidades não são feitas. Ele não conhece. Conta uma lenda urbana, mas infelizmente real, que crianças de uma ou duas gerações anteriores a dele, jovens hoje entre 25 a 33 anos, ficaram surpreendidos que o leite não vinha da caixinha do supermercado e sim das tetas da vaca. O que uma geração vê como comodidade, uma anterior entende como preguiça e algumas posteriores perdem a referência, atribuem novos e outros significados, por vezes, o da pressa, da insatisfação, da intolerância, Um tempo que a grosso modo se estrutura na crença ilusória de que entre o querer, o desejo e a satisfação, realização há apenas um clic, um botão. 

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Imagem 2. Passeio pedagógico incentiva o turismo em propriedades rurais. Fonte: www.empaer.mt.gov.br.
Imagem 2. Passeio pedagógico incentiva o turismo em propriedades rurais. Fonte: www.empaer.mt.gov.br.

Por milênios havia uma fratura entre o campo dos sonhos, dos desejos e o da realidade. Embora, tessituras de uma mesma e única realidade, os tempos entre o desejo e a realização eram diversos. No tempo dos sonhos, tudo sempre foi imediato. Quando sonhamos, o desejo e a coisa desejada se materializam no instante, na hora. No sonho não há espera. Pensar-sentir se plasma em realidade. No plano físico isso não se dava com tanta velocidade, por vezes, nunca se dava. Havia sonhos, desejos impossíveis de serem realizados, satisfeitos e as pessoas viviam com essa falta. Algumas delas viravam frustrações, raramente, revoltas; pelo menos não como espera-se revoltas. Pelo contrário, havia um impulso cada vez mais forte de se manter na norma, de se ter uma conduta ilibada, de fazer o certo, mesmo que esse fazer representasse a continuidade do mesmo. 

Na década de 30/40 entre o desejo de tomar café com leite tinha o tempo de ordenhar a vaca, moer o grão de café. O desejo tinha até hora, porque a vaca não estava à disposição durante todo o dia. Os dias não tinham feriado, férias. O tempo do campo, da roça, não tem domingo, ou dia santo. A vaca dá leite, a galinha coloca ovos e é necessário a ação humana/trabalho para compor e auxiliar nessa harmonia. Uma harmonia que com a presença humana, ou sem a presença humana tudo funciona, mas com ela há benefícios para todos. O tempo subjetivo dessas pessoas era regrado, marcado por esse ritmo, por esse ciclo. Entre o querer e o ter havia o fazer, o realizar. Sem a realização direta, clara, física, fisiológica, não há mundo. Nessa perspectiva, o tempo subjetivo sabe que precisa fazer a sua parte, mas apenas ela não basta. Há uma dependência do tempo com o clima- se chove, se faz calor demais, se faz frio demais, se tem insumo, se tem força, se tem sementes, se tem pasto, se tem lugar de estocagem. As dependências são muitas, a compreensão, a tolerância, a solidariedade são maiores àqueles que cedo madrugaram.  

O tempo da década de 60/70 esse intervalo diminui. É possível ir a geladeira e pegar o leite de saquinho. Ir até o armário e pegar o pó do café já moído e embalado. O preparo leva o tempo da fervura d’água e do leite. O tempo subjetivo é diferente. Por um lado mais flexível do que o anterior, mais elástico. Por outro mais apressado, mais rápido. As velocidades vão sendo alteradas, modificadas. O tempo dos anos 30 é o tempo da bicicleta, das carroças, carros de boi e charrete. O tempo dos anos 60/70 são dos automóveis, das máquinas, do rock, da guitarra elétrica, do fogão a gás. É um ritmo mecânico, mas ainda guardando relação com o tempo humano. Ainda era necessário esperar, aguardar para se ter. Havia ainda um diálogo humano entre o desejo e a realidade. 

Na atualidade tudo muda. Nas décadas de 1930/40 a luz era de vela, de lamparina. Na dos anos 60/70 a luz é elétrica em muitos lugares. Na atualidade tudo funciona na velocidade da luz, na velocidade do click. Tudo pode ser acelerado e a vida é vivida em constante aceleração sem limite de velocidade, sem entendimento de processo. Tudo parece sempre pronto. Tudo parece mágica. Tudo parece prescindir do trabalho, do ser humano. na velocidade da pressa vai se invisibilizando o que transforma e faz o mundo- trabalho. Não importa se manual, se intelectual, se presencial, se em casa. É o trabalho que possibilita a transformação, a realização. Se não o colocamos na equação ampliamos a falta, a náusea, a angústia, a frustração. 

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Uma partilhante linda, ao comentar a sua compulsão por compras, ilustra como o Instagram dispara gatilhos nela. A bela partilhante conta como que no seu tempo de infância folheando as revistas de artistas e de moda no interior do Brasil, o desejo de ter uma roupa daquelas demandava ir ao centro, ver se tinha um pano parecido, comprar o tecido, tirar as medidas, realizar a costura. Hoje, ela em um clic, sem sair de casa, entra na loja que se apresenta diante da sua tela e pode estar em outro estado, outro país. Com mais um click, ela escolhe a medida da roupa, em outro ela paga. Em dois dias, máximo uma semana, a roupa chega na casa dela. Muitas vezes, quando chega, não se sabe ao certo por qual motivo se comprou o produto. A revelia disso a temporalidade mudou. A espacialidade mudou. Antes havia um tempo que proporcionava a maturação do desejo. Hoje há toda uma linha de mercado que explora, literalmente, a compra por impulso. Impulsos estimulados por algoritmos que sabem o que desejamos, para qual produto nosso desejo irá caminhar, antes que percebamos. Como um jogador de xadrez, as inteligências artificiais (IA) antecipam nossos movimentos em semanas, meses. Direcionam nossas ações para determinados comportamentos e afazeres (O Dilema das Redes Sociais. Democracia Hackeada). O contraponto é que ela, uma mulher próximo dos 40 anos, recorda que havia esse processo, que havia as costureiras e suas máquinas. Tiravam medidas da cintura, dos pulsos, dos bustos, da altura. A geração anterior quando dá um clic acredita que a roupa nasce pronta. A roupa não tem costureira, nem alfaiate, apenas robôs. E tais robôs foram programados por outros robôs. 

Nessa linha que estamos tracejando, queremos apontar que nosso olhar vai em direção ao resultado. Cada vez mais o desejo é delineado como ponto de chegada e não como processo. O desejo constrói um continuum perigoso, falacioso com a realidade retirando o trabalho do caminho. Eu quero café com leite posso escolher dos leites em caixinhas que duram seis meses, passando por capuccinos que se acrescenta água, a capsulas para cafeteiras elétricas. Dá para imaginar um leite que dura seis meses? Há algo mais antinatural do que essa constatação? Os leites retirados da vaca e colocados em leiteiras sem lavar devidamente talhavam em minutos, expostos ao sol por muito tempo talhavam em horas. Em outros termos, vivemos uma sociedade na qual quando temos fome não há necessidade de se esperar para saciá-la. Tal qual o bebê que diante do choro tem sua necessidade interpretada e resolvida pelos pais, temos hoje por um click a instantaneidade dessas resoluções. Mas, que tempo subjetivo é esse? Como as gerações atuais lidam com essa naturalização da artificialidade do tempo? Como lidar com as faltas nesse cenário? Como se suporta as lacunas, os lapsos, as descontinuidades nesse processo? O que se faz quando se tem que esperar e as vezes por anos, décadas, uma vida? 

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Essas são respostas difíceis a todas as gerações, mas algumas foram calejadas pela falta, pela espera, pela carência. Novamente, enfatizo que estou me valendo de uma situação ideal de que o fator econômico não é um obstáculo a esse tempo. Ao mesmo tempo que ignoro esse fator sou impelido a constatar que vivemos de forma mais burguesa, independente da concretude material. Pais trabalhadores buscam suprir com muito esforço, trabalho, as carências e faltas que tiveram na infância, na vida. Boa parte dos filhxs não compreendem esse esforço com gratidão e sim como obrigação. Há uma geração de pais que poupam os filhos do contato com a espera, a perda, a frustração, o não. Os reflexos disso, embora não haja uma causa única e nenhuma explicação definitiva, preocupa tanto enquanto causa, quanto sintomas, pois vão em direção a saúde mental e emocional, isto é, lidam mal com as perdas, as carências. Quando as coisas não vem na velocidade do click, eles abandonam, desistem, largam, se prostram. 

Quando avançamos no click e vamos a sala de aula, temos alunos com ideações suicidas, auto mutilação, diagnósticos de depressão, bipolaridade, ansiedade, TDAH e diversos outros laudos cada vez mais cedo. Temos escolas fazendo pressão para que meninos de seis anos leiam e escrevam em duas línguas. Educadores colocam a escola como lugar sério, exige-se que crianças fiquem sentadas por 4 horas e as que levantam, andam, gritam, são encaminhadas às psicopedagogas que encaminham a psiquiatras e medicam crianças do Fundamental I com Ritalina e similares. Ser criança nessa aceleração virou uma espécie de doença para alguns pais. O desejo de alguns deles é o de que do colo, os filhos fossem diretos à universidade, sem precisar de engatinhar, aprender a andar, ralar joelho, cair de bicicleta, brigar na escola, ficar de mal do coleguinha, se interessar pela primeira pessoa, ter o coração despedaçado com o fora. 

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Dando mais outro click e indo para o Ensino Médio tendo como escopo algumas das escolas mais caras de BH. Aquele menino medicado com 7, 9 anos agora se prepara para o vestibular de medicina. A menina, coleguinha de sala, chegou aos 17 anos e já realizou dois abortos, um por conta própria e sem o conhecimento dos pais, o outro com o conhecimento de um deles, maioria das vezes, da mãe. Sem necessariamente ser dessa ordem. Nas salas de aula do EM há pelo menos duas garotas que praticaram aborto. Há no mínimo mais uma que ficou grávida. O ponto em comum entre meninos e meninas, agora jovens, é que eles têm conhecimento de inúmeras drogas lícitas e ilícitas. Experimentaram, conhecem o barato, fazem as combinações de uso que dá inveja a farmacêuticos. Bala para efeito x, bebida para atenuar efeito y, energético para potencializar efeito z, viagra para direcionar o efeito b. Um combinado que vai potencializando e administrando o efeito da outra. Essas práticas são, igualmente, mapeadas na escola pública, no entanto, os índices de abortos são menores e o aumento de evasão por gravidez na adolescência é maior. As drogas seria um capítulo a parte. 

Imagem 3. Setembro amarelo. Fonte: freepik.
Imagem 3. Setembro amarelo. Fonte: freepik.

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Terceiro e último click é que eles passam no vestibular, vão para cidades longe dos pais. Cognitivamente, eles estão preparados. Mas, emocionalmente, não sabem lidar com o não da coleguinha sem ridicularizá-la. Não conseguem lidar com outras posições e embates que sejam diferentes do deles. Emocionalmente, são frágeis. Mais frágeis que outras gerações, porque as almofadas acolchoadas os retiraram do inevitável: “o contato furioso da existência”. Mais grave é que os índices de suicídio têm aumentado substancialmente. Seja pela insensibilidade acadêmica, seja pelo despreparo, de todo modo, a dificuldade em suportar a falta. 

Um amigo terapeuta aqui de BH no seu trabalho com adictos trouxe esse locus clínico da sala de aula. Vemos o adoecimento dos alunos. Escuto pedagogas, psicólogas, mães, pais, falando do processo dos filhos. No entanto, poucos percebem o tanto é doentio nossa forma de educar, de ensinar. O quanto o uso das drogas pelos filhxs é um sintoma das relações viciadas dos pais e da sociedade. Na aceleração da vida buscou-se suprir os desejos dos filhos e das filhas a todo custo. Esquecendo que a espera, não a falta, em si, mas a espera faz parte do processo. É na espera que o relógio subjetivo sincroniza com o cronológico. É na espera, na preparação, no trabalho entre o desejo e a realização que se forja as pessoas a lidarem, minimamente, com a frustração. Se a gente aprende a esperar, a gente aprende que uma hora passa. Não tira a dor, a angústia, o mal-estar, mas passa. Não na velocidade do click acelerado, mas nessa velocidade do tempo subjetivo, da vida, que nos chama e nos pede olhar, escuta, atenção. 

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Imagem 4. Divulgação do documentário Stutz (2022) com o ator Jonah Hill e o psiquiatra Phil Stutz. Fonte: visao.sapo.pt.
Imagem 4. Divulgação do documentário Stutz (2022) com o ator Jonah Hill e o psiquiatra Phil Stutz. Fonte: visao.sapo.pt.

No consultório percebe-se um universo que não é dado de imediato. O consultório é o espaço da fragilidade, não importa os papeis sociais representados no mundo. No consultório lida-se com a nossa parte humana mais vulnerável. E todos nós somos vulneráveis, frágeis. Claro, que com a saúde física, profissional e financeira em dia não observamos nossas fragilidades. Elas ajudam a tampar muito bem. Mas, e as crianças, adolescentes, que dependem economicamente dos adultos, quem olha as fragilidades deles? Com quem e onde elxs falam delas? As mulheres, negrxs, gays, trans, onde se lida com as fragilidades e vulnerabilidades delxs? 

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Chegamos numa velocidade não humana. Num ritmo que impossibilita o ver, o sentir, o compreender, o refletir. Nessa velocidade a única possibilidade é o choque, a única forma de parar é colidindo. Vivemos um mundo de colisões. Um mundo no qual a maioria de nós se encontra fragmentado, quebrado, porque tivemos que ser desacelerados. Estou pensando nas doenças cardiovasculares, nas arteriais, nos AVCs, nas depressões, síndromes de pânicos, surtos. De repente, um colapso do sistema, que ajuda na desaceleração. Nossa forma de educar, de viver está nos adoecendo. As pessoas estão sendo adoecidas nos postos de trabalho e adoecendo ainda mais quando perdem o emprego. No entanto, para alguns estar ou não trabalhando não assegura a dignidade básica a sobrevivência. Isso ocorre ao mesmo tempo em que as mídias sociais, as plataformas digitais, os meios de comunicação vendem realização de sonhos como se fosse um click. Vendem fama, dinheiro, fortuna, sucesso como se o processo não fosse essencial. Na aceleração do click estamos robotizando nossa sensibilidade. Parece que estamos numa velocidade cuja colisão é inevitável: Covid-19. Mas, como a Peste de Camus também nos acostumamos. Estamos correndo, fazendo o que não gostamos para deixar o mundo da mesma maneira. Nosso click acelera, mas não muda nem o final da história, nem mesmo para outro filme. 

Imagem 5. Homem de pé em campo de flores amarelas. Fonte: istockphoto.
Imagem 5. Homem de pé em campo de flores amarelas. Fonte: istockphoto.

Kelsen André

Aprecia o universo do conhecimento, buscando decifrá-lo pela perspectiva da razão como corpo mental, algo maior, mais sofisticado. Pensa com o coração e tem saudade de quando pensava com as pernas. Bacharel Licenciado em Filosofia, mestre em Educação Tecnológica, Filósofo Clínico e Educador Consciencial. Em 2011, fundou o Instituto Fiholosofico, casa para lidar com as demandas do Grupo Espiritualista Flor do Amanhecer, do qual é dirigente e médium desde 1998.