Navegava eu tranquilamente pelas ondas cibernéticas, quando um chamado do Bira me trouxe ao porto rapidamente. “Você pode fazer um texto sobre os trapalhões?” e usou da cantada que eu não resisto: “Pode usar da filosofia!” Pronto! Estava fisgado! Continuamos a conversar e ele a me detalhar sobre o pedido. Falar sobre Os Trapalhões nas Histórias em Quadrinhos e, com destaque a um dos artistas responsáveis pelas minhas risadas na infância, José Kimura.
Quando criança não ligava para quem desenhava, escrevia os roteiros – nem sabia que existia isso, achava que era só desenhar. Eu só ficava devorando os gibis que meu pai comprava ou os que eu ganhava do seu Osvaldo, dono da banca de jornal da Praça dos Macacos, em Poços de Caldas. Quanta inocência! Um mundo mais complexo que vim a conhecer só adulto.
Ficava entretido, divagando no meio das pilhas de Príncipe Valente, Bolinha, Luluzinha, Brotoeja, Mickey, Fantasmas, Tio Patinhas, Mandrake, Pererê, Spirit, Gibi … ali também havia Os Trapalhões. Pilhas e pilhas de gibis que foram diminuindo com as mudanças. Até restarem bem poucos.
Nas conversas com o Bira, ele me mandou um trabalho-homenagem feito por ele, Aparecido Norberto e Alexandre Silva, Os Trapalhões e seus desenhistas nos tempos da Bloch. Ali comecei a conhecer melhor aquele mundo complexo que falei. Sob a batuta do Ely Barbosa, passaram Carlos Cárcamo, Eduardo Ventillo, Carlos Migliorin, Fernando Bonini, Sérgio Lima, João Batista Queiroz, Watson Portela, Joel França, Arthur Garcia, Domingos de Souza, Ademir Ponte, Bira Dantas, Aparecido Norberto, Vila e Zé Kimura.
Mas antes de adentrarmos nas boas traçadas linhas dessa turma, vou falar um pouco sobre o quarteto dos cômicos que me acompanharam pela adolescência.
Os Trapalhões
Em 1975 cheguei em Poços de Caldas, proveniente de Macapá. Meu pai, bancário, fora transferido. Uma das surpresas foram a existência de canais de TV. Na capital amapaense, estava ainda sendo implementada o sistema televisivo, havia apenas um canal. Era muita coisa dentro daquela “máquina de fazer doido” que ficava na sala. Um dos programas que lembro era d’Os Trapalhões.
O quarteto definitivo como conhecemos: Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, formou-se no ano de 1974. Três anos depois trocaram a TV Tupi pela TV Globo, onde ficaram até o fim. Cada um trazia uma característica que fazia o grupo apresentar, praticamente, a cara do Brasil. Didi (Renato Aragão) era o nordestino esperto, que geralmente se dava bem no final; Dedé (Manfried Sant’Anna) era o galã do grupo, era o “escada” principal do Didi; Mussum (Antonio Carlos Bernardes Gomes), o sambista bem humorado, orgulhava de ser da Mangueira, ficou famoso por utilizar o “is” no final de quase todas as palavras: cacildis, forévis, são alguns dos bordões que ele popularizou; Zacarias (Mauro Faccio Gonçalves) era o mineiro tímido da trupe, sua voz fina, personalidade acriançada, características que atraiu o público infantil. O filme deles que mais me cativou foi Os saltimbancos trapalhões, que rendeu uma coluna na Revista Filosofia, Ciência e Vida:
“Nos últimos anos da ditadura militar brasileira, Os Trapalhões – os artistas, não os militares – resolveram fazer um filme, adaptação da peça teatral “Os Saltimbancos” de Chico Buarque, Sérgio Badotti e Luiz Enríquez Bacalov. O filme relata a história de quatro funcionários humildes (Didi, Dedé, Zacarias e Mussum) que, sem saberem, se tornam a principal atração do circo Bartolo. Barão (Paulo Fortes), dono do circo, conhecedor da importância deles, se utiliza da ingenuidade destes para lucrar cada vez mais, sem repartir com quem lhe proporcionava a riqueza. Assim como na peça, o filme critica, nas entrelinhas, o regime ditatorial da época e, de certa forma, a sociedade capitalista. Os trapalhões que eram criticados por seu humor pastelão apolítico começaram a ser visto com outros olhos pelos intelectuais da oposição. Interessante é ver uma cena onde os quatro picham uma parede com algumas palavras ainda muito atuais: “saúde”, “educação”. A música de Chico Buarque coroa um dos melhores filmes do quarteto”. (Revista Filosofia, Ciência & Vida, nº 32, 2008)
Mas o grupo foi além das salas de estar e do cinema. Se aventuraram pelos quadrinhos. Gustavo Machado, artista dos quadrinhos e que veio a desenhar Os Trapalhões na editora Abril, relata “que a busca por celebridade da mídia para uso em quadrinhos era o grande filão explorado pelas editoras”, no Brasil essa explosão deu-se nas décadas 80 e 90; mas era algo que já vinha ocorrendo há tempos, mesmo aqui na terrinha. Carlitos, Jerry Lewis & Dean Martin, Abbot & Costello, Os Três Patetas, O Gordo e o Magro, entre outros. Todos tornaram-se personagens de história em quadrinhos, com suas próprias revistas. O mesmo ocorrendo com os artistas brasileiros, Oscarito & Grande Otelo, Arrelia & Pimentinha e Carequinha & Fred. (Memória Cronológica e Afetivas de um Desenhista de Quadrinhos – postagem XXVIII).
Com Os Trapalhões não foi diferente.
Os Trapalhões em HQ
O ano era 1976, o mês, outubro. Chegava às bancas de jornais, lançada pela Editora Bloch, uma revista em quadrinhos da Bloquinho TV “Os Trapalhões” que trazia junto uma história do Gato Félix, personagem popular à época, possivelmente para impulsionar a venda do gibi. Essa parceria felina durou até o nº 13. O editor responsável pela revista foi Edmundo Rodrigues (1935-2012). A partir de agosto de 1979 assume a produção dos quadrinhos o estúdio de Ely Barbosa (1937-2007); uma diferença que salta aos olhos é que até Ely assumir os quadrinhos, praticamente todas as capas traziam fotos do quarteto, depois, já com a turma do estúdio Ely Barbosa, Os Trapalhões já apareciam em formatos caricaturais, estilizados pelas mãos do chileno Carlos Cárcamo.Ely Barbosa trouxe uma equipe de desenhistas, roteiristas, arte-finalista que foram contratados para dar sequência à publicação d’Os Trapalhões. Nessa turma você encontrava além do Cárcamo, Eduardo Ventillo, Sérgio Lima, João Baptista Queiroz, Fernando Bonini, Watson Portela, Bira Dantas e José Luiz Kimura, entre outros nomes. Nem todos ficaram até o final da publicação na Editora Bloch. Mas todos deixaram sua marca, sua característica nos quadrinhos. Isso fica muito fácil de perceber no trabalho que o Bira me apresentou, citado anteriormente, Os Trapalhões e seus desenhistas nos tempos da Bloch. Ali conseguimos distinguir a “impressão digital” de cada desenhista, nas características particulares ressaltadas em cada Trapalhão.
José Luiz Kimura
Confesso que fui conhecer melhor o trabalho do Kimura, e por consequência ele, através dos relatos e conversas recentes com o Bira, que o conheceu por volta de 1979, lá no Estúdio Ely Barbosa, onde Bira iniciava sua caminhada profissional. Nos três anos que Bira trabalhou com Ely, encontrou poucas vezes com Kimura, ambos eram “freelancer”, mas foram encontros intensos. Foi com ele que Bira aprendeu que “O trivial todo mundo faz. Você tem que inventar o SEU jeito de fazer e fazer do melhor jeito possível. Sair do bife sola de sapato do prato feito trivial e ir pro filet mignon no strogonoff.”
Kimura ia contra o sistema de produção, onde cada artista fazia uma parte dos quadrinhos: traço a lápis, arte final, letras… Kimura, buscava fazer tudo sozinho. Essa busca por apresentar ao leitor o “melhor strogonoff” é visível nos quadrinhos feitos por ele.
Vou me ater a uma característica que me chamou a atenção. Os personagens secundários, eram quase surrealistas. Lembrando, para mim, um pouco os traços do artista Benito Jacovitti (1923-1997), que, em seus quadrinhos, colocava linguiças andando, cobras com chapéu, ossos espalhados no cenário. Era o absurdo que fazia rir.
Kimura vai pelo mesmo caminho, mas como ele disse, com o “seu jeito” de contar a história. Por exemplo, na história “O azarado” d’Os Trapalhões nº37 (1981), o personagem principal é o Didi, que supera as situações de perigo. Kimura “preenche” essa história com vários personagens secundários que é uma outra via de humor, por exemplo, no primeiro quadrinho desenha um mendigo com seu chapéu pedindo dinheiro, em sua cabeça há um gato, também com um chapéu estendido pedindo “Leite B”.
Ainda nessa mesma história, um outro personagem aparece, um ratinho que, aparentemente, cai do jornal aberto pelo Didi, (estaria fugindo do gato?), fica entalado em uma latinha e escapa de ser esmagado pelo piano.
Nos quadrinhos seguintes, um motorista desastrado acerta um poste. O detalhe acrescentado pelo Kimura: a placa de parada proibida no pescoço do motorista.
Na revista Os Trapalhões nº 39 (1981), há uma história envolvendo Zacarias e Mussum, aqui grafado “Muçum”, a perspectiva que Kimura emprega, quase nos possibilita uma HQ em 3D. Tudo bem, forcei, mas é uma sensação parecida.
Mas Kimura atacou em outras praias também. Um bom exemplo é a história “A mosca”, com Tio Patinhas e Pato Donald, publicada na revista Zé Carioca, ano XXVII, nº 1299 (1976), pela editora Abril. Nela, Kimura, nos presenteia com muitas de suas características, desde a quebra da diagramação dos quadrinhos, uma perspectiva diferente, a cédula lembrando o relógio derretido de Salvador Dali, e, quem diria, Donald passa a história toda trajando uma ceroula.
José Kimura é aquele artista que nos arranca o riso. Sozinho, folheando um gibi, olhando os detalhes daquela arte. Conseguimos nos sentir bem após uma boa leitura. Por meio dele constato: O riso é um ato de resistência, o traço é rebelde. Resistência à realidade que tenta se impor; rebelde por não se condicionar às regras certinhas, nos provoca a um outro olhar. Kimura, com seu traço nos põe a pensar.