Imagem 1. Montagem  original com fotos encontradas de busca no Google por "intervenção alienígena".
Imagem 1. Montagem original com fotos encontradas de busca no Google por "intervenção alienígena".

Doutor Normal no Doidiverso da Estranhura

       Disclaimer: este texto foi confeccionado sem o auxílio de inteligência artificial. Quanto à burrice natural, já não podemos garantir.

       Nada é seguro na vida mortal, diziam os gregos do tempo em que se escreviam os textos que lemos desde então. Isso é ao mesmo tempo óbvio e um tanto quanto estranho; a explicação para doutor não reclamar é que, por essa época, distinguiam-se a vida mortal e a imortal, esta pertencente aos deuses. Ironicamente, estes últimos é que foram abolidos, e nós continuamos por aqui, correndo nossos riscos de sempre e inventando, exaustos mas insatisfeitos, outros tantos.

       Já disse alguém mais esperto, cujo nome não me recobra agora (e, sério, pode procurar no Google que não existe nenhuma referência em nenhum canto indexado da rede mundial de computadores, o que já é no mínimo estranho a essa altura do campeonato), que a sorte é a quase ocorrência de um azar. Se você quase é atropelado na volta do trabalho e só não se estropiou todo por um lindésimo de milímetro, você dirá que teve sorte para um caráleo, mas ninguém diz a mesma coisa para cada vez que sai à rua e simplesmente não é atropelado, nem leva um susto desse tamanho. O que diríamos, porém, se quase fôssemos atropelados, mas não nos déssemos conta disso? Quanta sorte, nesse sentido vulgar do termo, não temos todos nós a cada instante em que nenhum dos infinitos meteoros rolando sem destino pelos espaços mais siderais atinge o pálido ponto azul em que brincamos de viver?

       Desde os tempos mais primórdios os contos transmitidos de geração em geração em derredor de fogueiras produzidas com o atritar de gravetos sempre nos alertaram sobre os perigos de bulir com potências que desconhecemos. Na cultura grega, o caso mais emblemático é o de Prometeu, que desemboca no terror gótico na forma do doutor Victor Frankenstein (o título original do romance era Frankenstein ou o Prometeu Moderno). Mas, tal como os personagens dessas narrativas míticas e literárias, os personagens históricos, de carne e osso, sempre optaram por brincar com fogo, e nunca deram pelota aos avisos. Nem poderia ser de outro modo: sem o fogo furtado pelo herói grego não haveria as fogueiras em torno das quais se contassem tais peripécias. E assim crescemos e nos multiplicamos, e enchemos a terra, e a sujeitamos, e dominamos sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra, e Deus viu que isso era bom, antes de virar para o lado e voltar a dormir o sono dos eternos. E eis-nos agora diante de outro fim do mundo, não mais dramático que qualquer dos anteriores, porém mais sisudo, posto que amparado por pareceres científicos. Mas antes que as mudanças climáticas nos carreguem, voltemos aos nossos riscos do dia a dia.

       A História está cheia deles. Ou deve estar, eu suponho. Sei, por exemplo, que em 25 de janeiro de 1995 um radar russo detectou o lançamento de um foguete na costa da Noruega, com características similares às de mísseis estadunidenses. O então presidente russo Boris Yeltsin chegou a ativar a famigerada maleta com os códigos para disparar seus artefatos nucleares. Só não mandou tudo pelos ares porque preferiu tomar uma vodka antes. Foram oito minutos de botão na mão até que os russos percebessem que o suposto míssil era apenas um foguete científico para estudar a aurora boreal. O simples digitar de uma sequência numérica teria desencadeado a III Guerra Mundial. Tivemos muita sorte.

       Imaginemos que num piscar de um peido o fantástico desse a graça do seu ar em meio ao nosso bizarro cotidiano terrachatista, e que de repente, por sobre cabeças que equilibram espertofones com cujas lanternas se enviam morses capengas para o topo do domo, uma nave anielígena (você não leu errado; no doidiverso da estranhura é anielígena mesmo que fala) descesse em uma velocidade estonteante e ficasse pairando, envolta em seu escudo de invisibilidade, a uma altitude de não mais que algumas dezenas de metros, distância mais do que suficiente para que todos os da pequena agremiação pudessem ouvir clara e distintamente o pancadão do sistema de som espaçonáutico rolando um fanque proibidão (os caras são fãs da música terráquea). Então a música pararia, ouvir-se-ia (olha que chique!) uma microfonia e em seguida uma voz naquela entonação monocórdica de operadora de televendas: “Vocês acabam de emitir o código para intervenção intergaláctica; pisquem o terceiro número de Fermat para confirmar, ou o sétimo número de Fibonacci para abortar” (convenhamos que nessa eles realmente exageraram; foi exigência do censor). Ao ouvir a palavra “abortar”, todos se poriam a piscar agitadamente, nove, doze, quinze, vá saber lá quantas vezes, que nessa altura já teriam perdido as contas, quando ouviriam a mesma voz: “Não entendi. Por favor, pisquem sincronicamente. Sétimo número primo para confirmar. Sexto número primo para abortar. Uma piscada longa e breve para voltar ao menu” (note que estão fazendo o possível para facilitar…).

       Nesse fatídico instante, o destino da humanidade estaria literalmente nas mãos de um conselho de doutos descendentes da argila, devidamente instruídos da farsa da pandemia e prevenidos contra os perigos do marxismo cultural e da ideologia de gênero impingida nas escolas a indefensas ninhadas de contraparentes de tijolos e peças de cerâmica. Gente, pois, das mais altas luzes. O que poderia dar errado?

       Mas temos sorte, é claro. Graças à falta de coordenação da massa babelesca, nossos potenciais interventores concluiriam pelo error do sinal; então ouvir-se-ia (rapaz!) a mesma voz: “Cancelando missão. Reenviem o código para reabrir a chamada, ou pisquem qualquer sequência para confirmar”. E como num passe de mágica, típico desse gênero narrativo, o planeta estaria a salvo mais uma vez. Ou a nação, a paz, a democracia, ou qualquer outro valor que o roteirista pretenda exaltar. De preferência, opte pelo que estiver pagando em dólar, que vale mais do que dinheiro.

Mauro Bartolomeu

Poeta e escritor extraterráqueo, atualmente fazendo um estágio não remunerado neste planetinha rochoso do cinturão de Órion. Assumiu a forma humana para não assustar os demais habitantes, mas não adiantou. Parte de sua obra aparece também no blog Antenna Paranoica, onde vem publicando, muuuito a conta-gotas.