Talvez, nos tempos atuais, o que venha à mente quando se fala em discriminação seja o ato previsto em lei. Porém, antes disso, bem antes, a discriminação ou o ato de discriminar ou discernir é uma das práticas mais necessárias ao exercício da filosofia, nesse sentido, sendo a própria filosofia.
Como então, uma palavra que represente uma ação tão importante pode ser uma palavra que remeta a algo tão reprovável? Inaceitável do ponto de vista legal e de ideal humano, sendo a questão: como uma palavra tão necessária à vida, à afinidade com o saber, acaba sendo engessada em um ato negativo, inaceitável? Afinal, discriminar é bom ou ruim?
O que se enfatiza aqui é a palavra discriminação, quando em âmbito de questões raciais ou de gênero, entendida em forma de lei, se opondo ao uso inicial do ato de discriminar, pois equivoca-se em ideias culturais, sociais ou históricas desenvolvidas e consideradas, levando o ato de discriminar em um sentido não próprio – quando se pensa discriminar por julgar inferior. Mas isso sim seria justamente não discriminar. A palavra tem o peso apenas de um lado, qual seja, discriminação errônea se dermos a ela a capacidade de sua real função. Desse ponto de vista, a palavra não poderia ganhar status de substantivo, cabendo-lhe sempre a necessidade de um adjetivo para qualificá-la, como exemplo, equívoca ou inequívoca.
Pois bem, será que fazemos bom uso do filosofar? A filosofia orienta, discrimina e sabemos que são muitas as filosofias, talvez por isso se abra o campo das desorientações, aumentando ainda mais a importância do discriminar.
São palavras diferentes, que servem a contextos distintos. Mas será que exercitamos o ato de bem discriminar quando batizamos o conceito de discriminação como esta ação que oferece tratamento diferenciado/inferiorizado a uma pessoa ou grupo de pessoas, em razão de raça, cor, sexo, nacionalidade, etnia, orientação sexual, gênero ou ainda outro atributo? Talvez seja um bom exemplo, por meio da palavra, sobre o racismo estrutural defendido por Silvio de Almeida (2018).
A língua materna, como o próprio nome diz, nos acolhe, identifica, traduz e forma. No Brasil, o português é essa língua, mesmo que existam tantas outras em nosso território. E esse mesmo português que herda o “pois não” de Portugal, significando um “sim”, é a língua que estamos tratando aqui. A riqueza e peculiaridades da língua portuguesa não são o tema em questão, mas sim, esses dois significados controversos quando consideramos o ato louvável do discriminar com o repreensível da discriminação (legal). Poderíamos ter sido mais cuidadosos nessa nomeação.
O ato de discriminar relaciona-se com bem explorar, bem analisar e não ação reprovável em si. E se isso já está claro, engessar tal palavra em apenas um ato e valor, negativo, desapropria a palavra dela mesma, tornando-a contrária ao seu propósito.
Quanto, então, nos distanciamos das práticas autênticas que possam nos trazer lucidez? Cuidamos para que haja um bem enxergar/analisar? Como aconteceria isso? Depende de muita coisa, dentre elas, valores, crenças, histórias de vida. Mas nunca a expressão “anti” apareceu tanto em cena, desde termos como anti-comunismo até mesmo a impensável anti-verdade ou anti-real. Será que estamos confusos diante da virtualidade que cada vez mais se apresenta como “real”? Muito provável. Mas também o uso desenfreado dessa expressão “anti” poderia ser uma forma de se opor, de olhar por outro ângulo ou ainda fugir de alguma questão ou embate, colocando-se em negação. É o mesmo fenômeno de defesa que a Terra seja plana, sendo mais fácil simplificar diante de tanta complexidade cada vez observável, porém reduzindo, sintetizando de forma equivocada. Como defender que a “Terra é plana”? É um bom exemplo de não discernimento, de não discriminação.
Estamos nesse “caldo quântico”, embebidos e embriagados. Mas nos restam os princípios filosóficos que são tantos, dentre eles, o central amor ou afinidade pelo saber. Pressupõe-se que haja sabedoria. Mas somos capazes de sabê-la? O que ainda não se ouviu foi a expressão anti-sábio ou anti-sabedoria, mas não significa que não exista, já que quando cometo um ato de discriminação racial, por exemplo, não estou, contrariamente, discriminando bem, portanto, atos anti-sábios estão presentes de muitas formas, passando até mesmo como sábios. Mas isso não autoriza que nos coloquemos em uma posição anti, pois dela apenas penso estar mais confortável ou até favorável diante de um não saber, mas o contrário ocorre, quando não me relaciono de outros ângulos além de frente, em oposição, em posto de negação. Há de haver relação com as causas, pessoas e temas. Estar de frente, mas manter conexão, ligação. É necessário que haja troca, movimento, diálogo, e não engessamento conceitual.
Não se trata de ir contra esse ato legal, pelo contrário, pretende-se dar a ele movimento necessário para que possa filtrar bem, discriminar adequadamente. Sendo assim, o termo mais apropriado seria indiscriminação, pois diante de um ato batizado hoje por discriminação, tal pessoa na verdade não discriminou bem.
Viver pressupõe movimento, esforço. Não há parada, apenas algumas sensações de contentamento vez ou outra, quando se pode perceber o tempo de forma distinta. Com isso, diante da necessidade ou condição de não parada, tal como a natureza, buscamos a lei do mínimo esforço. Mas nós, mesmo sendo natureza, ainda aprendemos a cada instante sobre a nossa própria natureza, única, mas não necessariamente melhor que outras. Diante desses aprendizados, é bem possível que desvalorizemos alguns esforços, os quais na verdade seriam fundamentais. Como exemplos, podemos dizer que os próprios conceitos exigem reflexões, não tendo vida própria, como também, havendo necessidade de perpasse pelo crivo de cada um, de cada indivíduo, pois, apesar de semelhantes, somos diversos em nós e diante de outros. Assim, a arte de respeitar eliminaria muitos esforços e, sem dúvida, seria um louvável e reconhecido esforço. Sempre há movimento, seja mínimo, moderado ou máximo. O que vale considerar aqui seria a busca pelo saber, no caso, como já preconizado desde os pensadores gregos antigos, um que seja não apenas bom, mas também belo e verdadeiro. Nessa busca pelo saber há o próprio movimento, esforço, dedicação, e que nela haja também boa dose de acuidade, pois para que uma escolha seja bem feita ela precisa ser precisa. Para tanto, haja discernimento e discriminação.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
DISCRIMINAÇÃO – SAIBA O QUE SIGNIFICA. Portal Geledés. 2015. Disponível em: https://www.geledes.org.br/discriminacao-significado/?gclid=CjwKCAjw67ajBhAVEiwA2g_jEACxEERx-H0yP9w3bb47WR1KqyBIa8SWeZ7ufiz2DaMmSTAyHR9faBoCJQcQAvD_BwE. Acesso em: 15/05/2023.
JUNIOR, Antonio Gasparetto. Anticomunismo. Infoescola, 2006-2023. Disponível em: https://www.infoescola.com/sociedade/anticomunismo/ . Acesso em: 23/05/2023.
“NÃO-VERDADE, ANTI-VERDADE E PÓS-VERDADE”. Theosfera, 2017. Disponível em: https://theosfera.blogs.sapo.pt/nao-verdade-anti-verdade-e-pos-verdade-3392604. Acesso em: 19/05/2023.
PRINCÍPIO DA MÍNIMA AÇÃO. Atitude Reflexiva, 2019. Disponível em: https://atitudereflexiva.wordpress.com/2019/05/01/principio-da-minima-acao/. Acesso em: 17/05/2023.