Seríamos nós, seres humanos, capazes de criar nossa própria realidade? Para começar essa conversa, no momento de nosso nascimento, nós escolhemos nascer? Escolhemos as condições em que nascemos e vivemos? A resposta, obviamente, é negativa já que nossa existência em meio à natureza e à sociedade, inicia-se de forma compulsória. Da mesma maneira, a maior parte dos eventos e causalidades que nos atingem, desde as naturais até as sociais, não podem ser modificadas pela força de nosso desejo, nem controladas por nós.
No entanto, como bem afirma Sartre, na sua obra O existencialismo é um humanismo, se nós não escolhemos as condições, ainda temos uma margem de escolha, a partir de decisões que só cabem a nós, no contexto das limitações impostas pela vida. “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”.
Em cada ação do sujeito, ao longo de um dia qualquer de sua vida, cabe perguntar se cada uma delas foi um ato de escolha ou se já estava escolhido o que seria feito, seja por força social ou natural. O que vai comer, vestir, escutar, estudar, com quem vai falar e o que vai dizer. O que vai calar, por qual rua andar, se vai andar.
Nós escolhemos nossos amores e somos escolhidos por eles. São ações onde se choca a escolha racional com o impulso inconsciente. Se for mais inconsciente que consciente, é escolha?
Os filósofos liberais, que viveram no contexto do iluminismo europeu, acreditavam na liberdade de mercado pois, se somos seres racionais, nossas escolhas também deveriam ser racionais. E, assim, o capitalismo e a concorrência seriam consequências naturais de nossas escolhas individuais. Um resultado do conjunto de todas as nossas escolhas racionais, em melhores invenções e inovações, que venceriam nas disputas comerciais no âmbito coletivo, social.
Resultado do puro exercício da soma de todas as liberdades de escolha individuais, o “mercado” não poderia sofrer regulação externa, num jogo de vale tudo para ganhar dinheiro e vencer a concorrência. Esses filósofos alegam que a sociedade ganha com o não impedimento da liberdade de mercado. No entanto, ao longo da história, vemos que a concorrência capitalista foi (é) feita de monopólios e protecionismo às grandes empresas, concorrendo em total deslealdade com empresas menores e extrapolando sua lucratividade. Tais empresas chegam a impor a toda a sociedade um estilo de vida adequado aos seus interesses de monopólio.
Podemos questionar os liberais: “Se fazemos escolhas de consumo tão racionais, por que as empresas investem tanto em propaganda e marketing”? Não bastaria deixar que cada indivíduo escolhesse por si mesmo comprar aquilo que o beneficia? O que justificaria o excesso de produtos em forma de acúmulo e bagunça nas casas das pessoas, onde elas mesmas se perdem em meio ao caos, sem mesmo se lembrar de utilizar o que já possuem?
O vício consumista e as escolhas equivocadas de compras seriam também fruto de nossas escolhas racionais? Ou escondem impulsos irracionais e inconscientes, no contexto da liberdade de comércio, onde as propagandas nos induzem a sentir insatisfação constante com o que já temos?
Alguns podem responder que os direitos do consumidor nos garantem a troca de produtos que não estão adequados e a proibição da propaganda enganosa. Estas leis realmente resolvem os dilemas de fundo do impulso irracional de compras? O trabalho, que nos permite pagar por tais compras, é compulsório ou livre? A remuneração e as condições de trabalho resultaram de um pacto livre entre entes iguais? O trabalhador individual teve condição de escolher livremente para quem e como venderia sua força de trabalho?
E o consumo de música? De obras de arte? De narrativas inspiradoras que nos motivam a viver melhor? E o consumo de mídia social, produzida por influenciadores e empresas? Nós realmente escolhemos colocar nosso afeto e tempo de vida nessas mídias e obras de arte? Ou será que o marketing e o algoritmo nos fisgaram, encantando nossa alma, conduzindo nosso afeto e sentimento, sem que tivéssemos controle sobre seus efeitos, prendendo-nos tanto a atenção (e preenchendo nossos vazios) ao ponto de não sentirmos mais curiosidade de buscar outras produções?
E a religião? E as ideologias todas? E o nosso julgamento moral? É livre ou foi em nós colocado pela educação (doutrinação) que recebemos?
“Você pensa que faz o que quer
Não faz
E que quer fazer o que faz
Não quer
Tá pensando que Deus vai ajudar
Não vai
E que há males que vem para o bem
Não vem
Você acha que ela há de voltar
Não há
E que que ao menos alguém vai escapar
Ninguém (…)”
Como formar um juízo de valor, de fato, autônomo e livre?
Entrando no terreno arenoso da moral e da crítica aos costumes. E quando descobrimos que alguma figura a quem adoramos (ou endeusamos) segue uma ideologia, religião ou teoria, contrária àquilo que defendemos? Ou se, por acaso, em algum momento de sua vida, tenha tido uma prática que, no devido momento ou contexto era interpretado como normal, mas que hoje não é mais normalizado, como os casos de violência de gênero praticados por artistas e líderes de outra época? Ficamos frustrados, exaltados e muitas vezes, furiosos.
Da mesma forma que cancelamos um serviço ou um produto, cancelamos pessoas, apontando o dedo no erro do outro. Fazemos isso enquanto endeusamos outras pessoas, por corresponderem às nossas expectativas morais, estéticas e políticas. Às vezes, compramos briga por causas que não nos afetam ou por pessoas que não conhecemos, mas que nos servem de inspiração e motivação.
Um exemplo desse fenômeno foi a foto de Dalai Lama, líder político e religioso do Tibet, a quem muitos ocidentais endeusam mesmo que não conheçam o contexto original de onde a figura emerge. O líder e monge budista tibetano aparece num vídeo, amplamente divulgado pelas redes sociais, pedindo para uma criança chupar sua língua. A imagem sagrada e pacífica que essa figura irradia, desde décadas atrás, levou a reações diversas no Brasil.
Os EUA haviam construído uma narrativa heróica dos monges do Tibet, através do cinema e de sua mídia milionária, atrelando essa narrativa e simbolismos de pureza espiritual à defesa da independência política do Tibet. O que a mídia estadunidense nos escondeu foi que os líderes tibetanos se consideram donos dos corpos e das mentes das pessoas do Tibet, em acordo com seus preceitos morais, sendo que sua doutrina religiosa é lei no Tibet, assim como ocorreu na Europa Católica da Idade Média. Somente a Revolução Cultural chinesa, na década de 50, eliminou o imenso sofrimento daqueles seres humanos, que viviam destituídos de sua humanidade, sob a alegação de que deviam servir a uma ordem maior, e de que os representantes legítimos dessa ordem maior seriam os próprios monges, numa sociedade dividida em castas.
Aliás, o budismo e outras religiões elogiam muito a capacidade de submissão humana, incluindo seu “poder” de suportar humildemente o sofrimento, ficar quieto e fazer silêncio. Prometem a purificação da alma através do sofrimento e da dor, prometem o paraíso eterno, dentre outras bênçãos, relacionadas a outro plano da realidade. Você já se perguntou a quem certos silêncios favorecem?
“Paz sem voz não é paz, é medo”
Em resumo, a foto tão amplamente divulgada, e sua repercussão não revelam nada de novo sobre a história daquela região. No entanto, o espanto se deu devido à leitura distorcida da realidade, produzida por uma indústria propagandística milionária e muito bem difundida no mundo. O conflito político do Tibet é ignorado por quem julga moralmente a figura individual de Dalai Lama. Nessa narrativa não vemos qualquer oposição ou crítica ao modelo político tibetano tradicional, mas essa tradição está lá, sustentando tal beijo. A Revolução Cultural chinesa, nos anos 50, enfrentou os costumes e as tradições perversas daquela teocracia milenar, da mesma forma que em toda a China há, desde o início do século XX, a luta pela afirmação das “boas” tradições e da modernização, convivendo lado a lado, com o enfrentamento do que atualmente é considerado desumano.
Qual a tua opinião sobre a Revolução Chinesa? Você tem informação suficiente para emitir uma opinião prudente sobre a China? Você acredita que os trabalhadores chineses são mais explorados que os brasileiros atualmente? De onde vem essa crença? Por quais meios foi produzida? A China é uma ditadura? De que tipo? O que é uma democracia? Existe mais democracia no Brasil ou na China? Deixo aqui a sugestão de uma aula com o maior especialista em China do Brasil, Elias Kalil Jabbour, para que você aprenda um pouco sobre esse país gigante e surpreendente. Tem quase duas horas e cinquenta minutos de duração, mas garanto que vale cada minuto. Vai ser uma surpresa atrás da outra.
No senso comum brasileiro muitos cancelamentos pela pedofilia, nítida no vídeo, seguiram-se, enquanto muitos outros justificaram tal postura dizendo se tratar de brincadeira de uma “cultura diferente”. Diversidade cultural explica tudo? A cultura de um povo possui base material ou são somente hábitos inocentes?
Pouca disposição para o estudo e o debate permeiam esse tipo de situação, enquanto sobra emoção em tempos de bombardeio de narrativas. Aquele país continental que realizou uma revolução cultural e social profunda no último século, juntamente a uma revolução econômica, acredita que a cultura é fundamental. Por isso combateram e combatem o que julgam ser perverso e degradante dentro de sua própria cultura, enquanto exaltam sua riqueza de todas as formas possíveis. Aqui no ocidente, onde sequer debatemos cultura e conhecemos nossas raízes históricas, consideramos aquele país uma “ditadura”. Que espaço, os cidadãos brasileiros têm para se informar de forma adequada, estudar com qualidade e formar opinião política autônoma sobre o ocidente capitalista?
No Brasil crescem as religiões que lançam explicações sobre as determinações das ações humanas, quase sempre alegando que tudo o que passamos nessa vida se deve a uma realidade externa, concebida em outro plano, e que temos pouca margem de ação se nos distanciarmos do plano de Deus, de nossos guias espirituais ou do que está demarcado em nosso mapa astral. Dizem que depois de todo sofrimento (quando há) tudo será recompensado e toda injustiça punida. Será que essa moral religiosa não nos distancia da possibilidade de construirmos nossa verdade histórica? De fazermos a nossa revolução social, cultural e econômica?
Onde fica o tal do livre arbítrio? Não estou autorizada a escutar minha própria consciência, e decidir sobre meu próprio corpo e sobre o meu rumo? Quem criou Deus? Minha existência precede a essência?
Se fui programada para cumprir uma jornada, recebendo comandos de fora, como um robô, não sou livre. Agir conforme a vontade e deliberação de outrem ou de outra coisa, me tira a capacidade de escolher e de agir conforme minha escolha.
“Por outro lado, já sublinhamos que a relação entre existência e essência não é igual no homem e nas coisas do mundo. A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível: a essência do ser humano acha-se em suspenso na liberdade” (O existencialismo é um humanismo, 1998, p. 68).
No entanto somos seres determinados. Como dito no início deste texto, não escolhemos as condições em que atuamos, mas podemos escolher o que vamos fazer com aquilo que fizeram de nós ou com o que sobrou de espaço para nossa ação. Temos uma margem de liberdade a partir de nossa autonomia, que só pode se efetivar a partir da nossa ação consciente. Em outras palavras, estamos “condenados” a ser “livres” e até quando optamos pela não escolha ou pela neutralidade, isso também é uma escolha. Tomamos partido até de forma inconsciente e “sem querer” e todas as escolhas nos trazem consequências.
A relação entre nossa experiência (subjetiva) ou estado de espírito e a realidade, visando estabelecer a verdadeira liberdade, segundo Platão, dependem de nosso conhecimento do que é real. Podemos ser simplesmente iludidos, da mesma forma que alguém pode se considerar perfeitamente saudável estando com algum problema de saúde grave ainda não diagnosticado.
As mudanças na história do comportamento humano, perante as quais costumes, antes normais, vão passando a ser enquadrados como anormais ou passíveis de punição, enquanto outras modas, comportamentos e estilos de vida solidificados vão se transformando, gerando novas modas (do francês mode ‘modo’, do latim modus, i ‘medida’ – Dicionário Oxford), ocorrem por meio de um processo dialético, pelo movimento da consciência que, no ato de compreender o real, vai se tornando mais sofisticada e mais precisa na compreensão de si e da realidade como um todo.
Num embate interminável de contradições, segundo Hegel, nossa compreensão vai se desenvolvendo na mesma medida em que cada ponto de vista vai sendo descartado por um novo argumento. A possibilidade da liberdade humana caminha de encontro à construção da verdade, que poderá ser novamente desconstruída, enquanto se consolida uma nova verdade, sempre sofisticando a consciência de si e da sua identificação com a realidade como um todo.
Espero que esse breve texto te ajude a pensar nas coisas da vida.
“(…) é o fim da picada
Depois da estrada começa
Uma grande avenida
No fim da avenida
Existe uma chance, uma sorte, uma nova saída
Qual é a moral? Qual vai ser o final dessa história?”