1.
A Pichula Cuéllar
Somos deuses e demônios.
Passeamos pela luz,
Mas voltamos aos escombros.
Estou farto desta cruz.
Mãos sebosas nas mi’as pernas
Querem meu andar pesado.
Não restou nenhuma pena
No meu peito estilhaçado.
Já sabemos que é vaidade,
Que nos tenham em alta estima,
Nós que somos uns covardes.
Mas tocados por serpentes,
Claro vemos a verdade;
Cabe a nós trilhar a trilha.
2.
Na clareira da cidade,
Onde carros dialogam,
Mato e flor pedem passagem,
Altos prédios filosofam.
Essa tal lei do mercado
Vem tirando-me o sossego.
Quando puxo, eu não trago.
Se me visto, é pelo avesso.
Eu não sei se me desejam
Para a entrada ou sobremesa.
Pode ser que nem me queiram...
Pois aqueles que engordam,
Quando sentam-se à mesa,
Temem os pratos que provocam.
3.
Minha sina é o atraso.
Me desgasto, mas não mudo.
Vivo em outro compasso,
Descompasso com o mundo.
Os segundos me seduzem,
Chamam-me a saboreá-los,
Então correm e me confundem,
Vem a hora e eu me atraso.
Vejam! São meus batimentos!
Simplesmente não regulam
Por medalha ou pagamento,
Não permitem que me engulam.
Minha medida é o lamento
E alegrias que fagulham.
Ah, não! Ia me esquecendo
Agora saio com as sacolinhas transparentes
Sobre o Todo - Notícias de Cá
4.
Para onde foram as árvores?
- Cientistas afirmam que estão subindo os morros.
Por aqui as cortam como se fossem ratos
Substituem-nas por um ar-condicionado
- do carro pra casa, da casa pro carro
em ar refrigerado.
Os que as têm as veem como um fardo
Reclamam das folhas a encher-lhes os sacos.
Mas pra vocês que desejam tornar-se tutor de uma árvore!
Trago a solução:
Apresento-lhes “o Varredor de Folhas”,
Ou que as plantem de plástico.
5.
andamos sempre bem ocupados com alguma coisa
distantes do mundo e da natureza . . .
salvem os vagabundos! que tem tempo de ser nada
6.
dentro de nossos carros altos e robustos
disfarçamos a pequenez de nossas vidas
7.
eu caminho a cidade
- privilégio de quem não tem dinheiro mas tempo
como meio de vida
e vejo rostos desesperados
- aflitos condutores de automóveis
e pergunto onde está a arte disso
?? - no olhar
8.
o ser humano é um bicho que verticalizou-se porque caminhava
- agora, tem de lidar com ser bípede
e não caminhar
9.
não há noite na cidade
por onde caminho
holofotes proíbem a escuridão
desnorteados com a luz não-natural
perdem-se homens pássaros peixes
estrelas
10.
Transmutando
Quando a dor me despertava
E era frio o ar lá fora
E distante ainda a aurora
Eu mandava o Deus à fava
Ao deitar-me ao fim do dia
Com meu corpo em cansaço
Bendizia ao Deus do espaço
Se o meu dedo não doía
Os Flátulos
Seu cântico sagrado era o pum. Quando algum irrompia no silêncio do salão oval, sinais de reverência, pausa. Examinava-se os compostos. Trocas de olhares. Identificava-se até oito elementos, sendo o examinador bem qualificado. Tomavam notas em seus caderninhos.
Os flátulos, como se autodenominavam, adoravam se divertir, mas reuniam-se infalivelmente para o culto do silêncio e estudo dos aromas. Um pum mais velho, maturado, apresentava característica de blend, difícil distinção de sabores, e ganhava a admiração dos demais instantaneamente.
O pum novo não-maturado revelava que o portador possuía maus hábitos alimentícios, que o que comia não lhe caía bem. Tinha aspecto molhado, tons em verde-musgo, diziam. Às vezes realizava curva ax’scendente, outras estalava, outras parecia abraçar o emissor, diziam.
Alguns, temendo o julgamento alheio, retiravam-se para a solidão de um quarto de banho, desviando-se, assim, do compromisso tácito. Eram irremediavelmente repreendidos por um ancião: “Fulano está nos privando do seu cheiro mais íntimo. Por que faz isso?”
Já outros flatulavam no mesmo horário, duas vezes ao dia. Eram compenetrados, pediam licença, colocavam-se em pé, flexionavam os joelhos, juntavam as mãos e fechavam os olhos. O som contínuo e levemente abafado pelas calças revelava o perfeito domínio das suas funções. Desnecessário dizer que estes eram aclamados os líderes da comunidade.
Estive com os flátulos por oito anos, quando foi enviado por meus pais para desenvolver meus estudos em humanidades. Na minha despedida, fui saudado por uma festa de doze horas. E como em toda festa, todos os excessos! O jogo dos olfatos foi uma grande brincadeira e contou com mais de 30 ventoneiros. Haviam consumido, especialmente, as plantas e alimentos mais exóticos da sua flora. Meu desempenho no reconhecimento dos odores foi bem satisfatório para um forasteiro! Mas o gran finale ficara pro fim: que surpresa ao escutar o Coro Infantil executar Carinhoso, de Pixinguinha! - através de seus foles biológicos, para esclarecimento dos não-nativos. Um rio de lágrimas me cai dos olhos ao redigir estas palavras e posso apenas dizer aos meus estimados amigos flátulos: “até breve”.
Entre a morte e a vida, flui por meio da música e da literatura para chegar até o coração dos homens. Compositor por intuição, flautista por determinação e cantor por teimosia, sua veia musical convive pacificamente com a necessidade de autoexpressão do Ser através do registro poético, apesar dos arroubos de ciúmes de ambos os lados. Graduado pela UNESP de SJ Rio Preto, trabalha com ensino e tradução dos idiomas inglês e espanhol.