ao prof. Luiz Otávio Damasceno Pinheiro
Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei;
mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei.
(Confissões. Santo Agostinho)
O tempo é esse negócio engraçado descrito por Santo Agostinho, eu sei o que é, mas não me pergunte pois não saberei te explicar. Ora, se formos prestar bem a atenção, veremos que o tempo enquanto algo material, palpável, realmente não existe. É uma invenção da raça humana, de alguém que estava com tempo de sobra para inventá-lo.
E o pior, apesar de ele não existir, é ele, o tempo, que comanda a nossa vida. O utilizamos como argumento para reduzir o pagamento: “você chegou atrasado, vou descontar do seu salário!”; para abalar os relacionamentos: “você não tem mais tempo para mim!”, “você sempre chega 30 minutos atrasados aos nossos encontros”; restringe a nossa expressão: “você dispõe de mais dois minutos para concluir sua fala”; o tempo, sempre marcando nossa vida no antigo tic-tac do relógio, no dia a dia do calendário, e por aí vai…
Mas, por que, cargas d’água, estou tomando o teu precioso tempo para falar sobre ele?
É que há tempos venho maturando uma ideia. Que o filme De volta para o futuro (1985) tem uma conexão com o documentário Get Back (2021). Mas, antes, um pouquinho da minha relação com os quatro meninos de Liverpool.
Agora, enquanto escrevo, conto com 57 anos vividos nesta superfície terrestre (não plana, que fique bem claro!); já, os remanescentes dos Beatles, Ringo Starr tem seus 83 e Paul McCartney, 81 anos. Sou fã dessa turma há 44 anos. O tempo passa.
No ano em que nasci, os Beatles pararam de fazer shows, não sei se para não incomodar o sono deste recém-nascido, ou porque estavam cansados da loucura das turnês, mas o caso é, eles não tocariam em público por um bom tempo.
Em virtude deste “silêncio”, só os fui perceber em 1979, quando minha tia Vitória deixou o LP Let It Be (ainda capa sanduíche), que é uma capa plastificada. Bem, esse LP contém 12 músicas. Fiquei o ano todo tocando até, como dizem, “furar o disco”. Gravei todas as músicas em uma fita K-7, numa velocidade alterada, pois tinha um toca-fitas National e, quando as pilhas iam acabando a reprodução ficava mais lenta. Assim, conseguia ouvir os Beatles até o último suspiro das pilhas.
Em 1984, mudei para Campinas. Aqui ocorreu um evento promovido pelo meu amigo Osny, Beatlemania, onde, além de toda memorabilia exposta pelos fãs, também todos os filmes do quarteto foram projetados. Assisti a todos, todos mesmo, com aqueles olhos de uma criança na loja de doces. Entre esses filmes, um me marcaria: Let It Be. Ali estavam os Beatles em sua última performance para o público. O filme foi lançado após a dissolução da banda. Era visível a desintegração do conjunto. Recentemente, comentei com meu amigo-irmão Luciano, que o diretor Michael Lindsay-Hogg estava imerso naquele contexto de brigas, rompimentos, voltas, amizade, uma ebulição de emoções daqueles rapazes que estavam juntos desde os finais dos anos de 1950. Desta forma, acredito que Lindsay-Hogg ao finalizar o filme, um ano após as filmagens e já com o rompimento da banda dado, foi “contaminado” pela ebulição do momento. Michael narrou cinematograficamente o fim de um sonho.
Mas, voltemos à Campinas. O ano de 1985 estreava nos cinemas o filme “De volta para o futuro”. Uma aventura de ficção científica a mexer com nossa imaginação: “mas e se eu conseguisse mudar meu passado…”.
O filme começa com milhares de relógios sincronizados em tic-tacs uníssonos. É o laboratório do cientista Dr. Emmett Brown (Christopher Lloyd). Ali conhecemos Marty McFly (Michael J. Fox), um adolescente com seus problemas cotidianos e uma família disfuncional para o molde norte-americano de perfeição: um pai covarde e submisso, uma mãe alcoólatra e pudica e um casal de irmãos relapsos… Doc Brown chama Marty para filmar seu experimento com a máquina para viagem no tempo, montada por ele em um DeLorean, carro esportivo icônico da década dos anos de 1980. Doc justificou: “Ao meu ver, já que você vai construir uma máquina do tempo em um carro, por que não fazer isso com estilo?”.
Certo momento aparecem os terroristas líbios¹ buscando o cientista para quem haviam vendido plutônio roubado. Na correria para fugir, acidentalmente, Marty entra no DeLorean e acaba viajando para o passado. Lá entra em contato com o passado de seus pais, desconstruindo toda a imagem que lhe fora passada. A mãe, Lorraine (Lea Thompson), não era a recatada de 1985 e o pai, George McFly (Crispin Glover), um “nerd” e medroso que, por amor, transforma-se – ao enfrentar e derrotar o valentão da escola, Biff Tanen (Thomas F. Wilson) – em um novo herói da escola. Evento que irá modificar toda a vida de Marty. Ao retornar ao seu tempo, aquela família que deixara, era outra. Seu pai um escritor famoso, sua mãe mais libertária e seus irmãos, protagonistas. E Biff, um submisso lustrador de carros. A família McFly agora era o modelo de família ideal. Uma volta ao passado, Marty mexendo alguns pauzinhos e voilà! Ele teve o presente que sonhou!
Ora, mas será então que é possível visitarmos o passado e modificarmos o presente?
Lembro, nas aulas de filosofia clínica, quando o professor Lucio Packter nos provocava a pensar sobre a questão de ir ao passado, a um momento difícil e nos instigava a conseguir melhorar a percepção deste inserindo objetos, pessoas que nos fossem caras e que, de certa forma, proporcionariam uma melhora existencial. Assim foi no filme De volta para o futuro. Mas, como fazer isso em um relato que possuíamos da história dos Beatles? Conhecíamos 81 minutos. Disto concluíamos que a separação era inevitável.
Seria possível termos uma outra perspectiva do ocorrido? Impossível inserir alguma coisa, alguém, que modificasse essa percepção. Nos foi agendado – e a gente sabe: “uma mentira dita milhares de vezes passa por verdade”. Imaginem uma história contada durante 50 anos. Até os próprios componentes da banda começaram a acreditar que naquele filme de 1970 estava retratado o fim dos Beatles.
No filme Let It Be temos, como disse anteriormente, uma narrativa contaminada pelos acontecimentos vivenciados pelo diretor Lindsay-Hogg. Em 2021, Peter Jackson, o diretor da trilogia O senhor dos anéis, concluiu o documentário Get Back. Ele teve acesso a mais de 60 horas de imagens e 150 horas de áudio, rendendo um documentário com mais de 8 horas, dividido em 3 episódios. Como Jackson nos conduz? Ele se utiliza da cronologia, dia a dia, sem saltos temporais e sem pular as narrativas. Vamos seguindo pari passu a banda. Desde sua chegada aos estúdios Twickenham, passando pelos estúdios da Apple e culminando no famoso concerto no telhado.
Peter Jackson faz um histórico rápido da banda, iniciando em 1956, quando John Lennon monta o conjunto The Quarrymen até 18 de janeiro de 1969, quando se iniciam as gravações de um especial dos Beatles para a TV. A partir desta data vamos caminhando pelo calendário durante 21 dias, conhecendo mais da dinâmica do trabalho da banda, da composição, dos arranjos e dos ensaios até culminar com a última apresentação para um público.
Com esse tempo estendido podemos verificar a queda de alguns mitos que envolvia o filme de 1970. O fim não foi ali, foi apenas o início do fim, com a entrada, quase no final do documentário, do empresário Alan Klein, que tensionará a relação entre os quatro. Outra coisa é a amizade entre eles, músicos, que tocavam juntos desde a adolescência. E ali, entrando na fase adulta (chegando aos 30), ainda mantém a mesma pegada.
Para aprofundar o conhecimento sobre a banda, fiz em 2021 um curso pela PUC-Rio, sob coordenação do prof. Eduardo Brocchi, Beatles: história, arte e legado. Entrei em contato com vários professores e professoras, dentre as quais destaco a querida e saudosa Lizzie Bravo, a vocalista que cantou com os Beatles e lançou seu diário de adolescente do Rio à Abbey Road contando sua aventura em Londres, acompanhando a banda. Outro professor que destaco, entre tantos, é o Luiz Otávio, que ensinou a perceber as nuances instrumentais.
Get Back foi uma verdadeira volta para o futuro! Fomos levados a vivenciar aqueles dias ao lado dos Beatles, e essa viagem ao passado alterou nossa percepção do presente.
Toda vez que ouço, olho, leio sobre os quatro cabeludos de Liverpool, pergunto-me: por que eles são ainda tudo isso? Se me perguntarem, não saberei responder; no entanto; se não for questionado, como fã, saberei a resposta.
¹ Não podia deixar de comentar: os norte-americanos, quase sempre, quando querem criar animosidades, inimigos, assassinos etc. antes os colocam em filmes para ir formando uma opinião contrária ao povo-alvo. Foi assim com os russos durante a Guerra Fria. Nos anos 80/90 do século passado foi a vez dos árabes, representados como terroristas desumanos, loucos que buscam acabar com a “paz mundial”, com a “democracia do ocidente”. Cabe, então, aos norte-americanos, a missão de manter a ordem e defender o mundo ocidental desse “risco terrorista”. Reparem nos filmes, começando por esse “De volta para o futuro” (1985), Aladdin (1992), True Lies (1994), entre tantos. Essa mudança de alvo, dos russos para os árabes foi explicitado no documentário: “Filmes Ruins, Árabes Malvados: Como Hollywood Vilificou um Povo” (2007), dirigido por Sut Jhally. Neste documentário é explicitado como foi criado por Hollywood a “Arabland”, caracterizada pelos 3B “belly dancers, billionaire sheiks e bombers” (dançarinas do ventre, sheikes bilionários e terroristas). Eis o povo a ser odiado.